domingo, 23 de agosto de 2009

Pequena Paulistana, grandes confusões I


Pequena Paulistana, grandes confusões I

Manhã gelada de agosto, um céu cinza, digno de São Paulo, alguma coisa perto das dez e alguns minutos.

Tento ligar o chuveiro, que parece brincar comigo, não esquenta. Aquecimento central antigo, ligo e desligo umas seis vezes, até que decide pegar, no tranco. Faz muito vapor. Prendo meu cabelo que está na cintura, num coque alto, afim que não molhe, não estou com vontade de secá-lo.

Volto e vejo se a internet voltou.

As luzes do modem permanecem apagadas, penso que depois do banho, com um pouco de sorte, elas voltem a acender, assim poderei ler meus emails.

Rezo meu Pai-Nosso embaixo da cascata generosa de água muito quente, parece-me mais eficaz rezar enquanto a água me limpa, sei lá o porquê.

Reparo que tem três sabonetes aberto no Box, eu lembro que eu mesma os abri, canso dos cheiros rapidinho, enjôo, vai irritando, assim abro um atrás do outro.

Me troco, passo um blush para dar uma cor em meio a todo o cinza do dia, visto um cashmire verde água para colocar cor e me destacar em meio a movimentação frenética vestida de preto e grafite, da Avenida Paulista. Deus me livre fazer parte dessa ópera negra – penso.

Entro no elevador, leio mais um comunicado do sindico. Este agora intitulado de “POIBIÇÃO de fumar nas aeras comuns do prédio”. Sim, POIBIÇÃO. Será que essa mula não revisa os textos antes de divulgar?

Me irrita, e planejo vingança. Anos a fio tendo que ler suas “poibições”, sem nada fazer. Decido que é hora, e sem temer o olho da câmera de vigilância, praticamente assinando o meu pequeno delito, pego minha caneta na bolsa e faço a correção ortográfica:“PROIBIÇÃO”. Pronto, ele que engula essa. Ora.

Já no Hall, encontro o próprio homicida da língua portuguesa, e dissimulada que sou, cumprimento-o antes de nos tornamos inimigos oficiais.

- Oi seu Ângelo. – sorrio apenas com o lado esquerdo da boca, maldosamente.

Tudo é muito artificial, programado.

Dobro a esquina e deparo-me com os mesmos personagens em seus cotidianos enfadonhos.

A senhora de setenta anos que dá em cima dos porteiros, levando pedaços de tortas quentinhas, saídas do forno de seu fogão vermelho, de 1982, vestida apenas com um hobie de seda preto, que imagino que usara em sua noite de núpcias. Um rapaz de duzentos quilos, no mínimo, que leva seu pitbull não menos obeso, amordaçado. Um homem de meia idade que compra caquis no caminhão de frutas, que anda como um pingüim, por ter uma perna curta e outra longa, com cabelos desgrenhados, grisalhos, como os de Eisntein. Este eu desconfio ser meu anjo da guarda, pois mesmo sendo portador de deficiência física, encontro-o em todos os lugares. Acho que quando posso vê-lo, ele disfarça simulando fazer compras. Ele também me olha feio, mas acho que tudo isso faz parte da encenação, para que eu ache que ele não é, quem eu penso que é.

Sigo.

Olhaaaa, lá na frente vai meu ídolo! Um pai novo, magrelo, de cabelos encaracolados e altos, que anda com as calças jeans caídas, porque não usa cinto. Ele leva suas filhas de três anos, uma em cada lado das mãos. Elas são gêmeas idênticas, moreninhas e de cabelos cortados bem acima dos ombros, e cada um delas leva pesadas mochilas de rodas, ambas lilases. O pai cantarola uma música da Marisa Monte, do CD Cor de Rosa e Carvão, “Alta Noite”, e caminha: ...alta noite já se ia, ninguém na estrada andava... no caminho que ninguém caminha, alta noite já se ia... ninguém com os pés na água...

Sigo saudosa de momentos que não tive com meu pai, uma saudade do que nunca vivi.

Fico minutos parada de um lado da Brigadeiro, esperando os dois sinais fecharem, e escondida atrás dos meus enormes óculos escuros, sinto-me a vontade para espionar quem está do meu lado, e quem aguarda do lado oposto. Todo mundo está com pressa, ansioso para que o sinal feche logo, ninguém se olha, ninguém se vê.

Atravesso em meio a multidão acinzentada, encontro abrigo na minha cafeteria onde sou habitué, meu avô já tomava café ali, enquanto vivo.

Está lotada, todo mundo precisa de um café quente para sobreviver a São Paulo e seus respectivos empregos infelizes. Café é um antídoto para o paulistano.

Acomodo-me numa mesinha alta, de frente para a rua, onde posso observar um morador de rua, chamado Marcelo e ariano do dia 24 de março. Ele hoje está mais louco que o normal, grita e está dentro de uma caixa de papelão, como se dirigisse. Ele buzina e arrasta a caixa com o próprio corpo no sentido dos carros. Acho triste.

Chega meu café, eu nem preciso mais pedir para a atendente o que eu quero, ela já sabe. Uma média expressa, escurinha, cheia de espuma e bem quente.

Abro meu livro na página 99. Leio “O Castelo de Vidro” de Jeannette Walls, biografia.

Enquanto queimo minha língua na bebida, entro no mundo de Jeannette, não ouço mais os berros de Marcelo, nem o blábláblá inaudível do café, muito menos o vaporizador da máquina do café. Estou em outro lugar.

Finalmente o café está no fim, só tem o pó no fundo da xícara, viro tudo afim que não sobre nenhum grão estimulante. Estou na página 112. Fecho livro. Pago a conta. Faço o caminho de volta. Droga, está garoando.

Caminho mais lentamente e estou mais quente e disposta por causa do café, estou pensando em como Jeannette pode hoje ser feliz, sendo que um dia precisou comer margarina com açúcar para ludibriar a fome.

Quando dou por mim, estou andando atrás da mulher que maquiou minha mãe para casar, em 1975. Ela trabalha no mesmo salão de cabeleireiro, usa o mesmo penteado.

Curioso andar atrás dela, eu nem existia quando ela maquiou e penteou a minha mãe, para casar com meu pai... Tudo começou ali, agora eu estou aqui.

Ela pára quando encontra uma senhora bem idosa, eu passo entre as duas, mas dá tempo de ouvir a conversa:

-Nossa! Como o cabelo da senhora cresceu! – Ela finge espanto.

Nada de especial, elas falam sobre cabelo.

Sinto que preciso ler mais, quero saber o que o pai de Jeannette fez para salvar sua família da fome.

Vou ler. Vou escrever. Vou experimentar margarina com açúcar.

...

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